sábado, 5 de março de 2011

As nuvens de hoje




Parabéns


Há quem coleccione moedas raras com éfigies de reis assassinados a tiro, selos da Polinésia, discos em vinil de grafismo escabroso, 78 rotações com fados perdidos dos primórdios do séc. XX, borboletas nabokovianas espetadas em alfinetes, cápsulas de bebidas gasosas que já não se vendem há 30 anos, roupa com a assinatura de costureiros famosos (licitada nos leilões do eBay), búzios enormes trazidos de praias longínquas, o diabo a sete. Eu não. Eu não colecciono nada de tão concreto, de tão palpável. Eu colecciono nuvens e continuo a achar que o cúmulo da monotonia é a visão — lisa, opaca, vazia — de um céu completamente azul.
Embora não consiga precisar o momento em que terei exclamado pela primeira vez, como Baudelaire, «j’aime les nuages... les nuages qui passent... là-bas... les merveilleux nuages!», sei que este é um fascínio antigo, uma extravagância de todas as idades e de todas as estações. Em miúdo, tal como a pequena Amélie Poulain (ou qualquer outra criança que ainda não esteja completamente atrofiada por Nintendos e PlayStations), adorava estender-me na relva, durante as infinitas tardes de Verão, a decifrar formas naqueles prodígios de brancura suspensa. Aqui um castelo, ali uma nau de mastro partido, acolá uma espada avermelhada pelo poente.
Falar de colecção a propósito de nuvens pode parecer um disparate. Como é evidente, eu não tenho nuvens, eu nunca as guardei, nem posso vendê-las ou trocá-las. Mas elas não deixam por isso de existir, catalogadas e tudo, em dois planos: na minha memória (ainda recordo, por exemplo, o relevo de certo cumulonimbo que vi a pairar sobre o Báltico, em Julho de 1988) e na memória do computador, em pastas cheias de fotos captadas com uma máquina digital.
O que eu queria mesmo, confesso, era andar pelo mundo à caça delas. Contemplá-las por cima (avião), por baixo (barco ou automóvel), por dentro (no topo das montanhas). E fazer depois um Diário das Nuvens, como o que Goethe escreveu em 1820, só com referências sucintas ao modo como os cumulus, os stratus, os cirrus e os nimbus se distribuem na atmosfera, se avolumam ou se desfazem em chuva.
«Uma arquitectura do acaso», chamou-lhes Jorge Luis Borges. Do efémero, acrescento eu. E talvez por serem assim — breves, frágeis, provisórias — me pareçam sempre tão belas.
José Mário Silva, Diário Notícias 12 de Agosto 2005, na rubrica "Extravagâncias de Verão"



Eu sei que tens o caderno, Ana Rute. Um dia muito feliz. Todos os dias cheios de alegria.